De um lado, a alta demanda por produtos madeireiros tem levado o Brasil a figurar no vergonhoso mapa da exploração não autorizada. Somente no Estado do Pará, um dos nove Estados da Amazônia Legal, 70% da madeira explorada é ilegal.
Os dados são de um estudo da ONG Imazon, que comparou as informações oficiais com imagens de satélite. A situação pode se agravar caso o Senado aprove o Projeto de Lei 2.633/2020, que permitirá a regularização fundiária de terras públicas federais ocupadas sem a obrigatoriedade de vistoria pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A proposta já foi votada pela Câmara.
De outro, as árvores que compõem a floresta urbana não são alvo do mesmo interesse. O chamado lixo verde é um desafio para a gestão dos municípios brasileiros, que descartam enormes quantidades de resíduos provenientes da poda ou da remoção de árvores das cidades.
A destinação dada a esses galhos, folhas e troncos de árvores também aprofunda um problema ambiental. De acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais, cerca de 45% de todos os resíduos gerados no país correspondem à fração orgânica – pouco mais de 36 milhões de toneladas de restos de alimentos e resíduos de poda. Somente no ano de 2019, o município de São Paulo gerou 50 mil toneladas de resíduos provenientes dos serviços de áreas verdes, que englobam poda e remoção de árvores e conservação de áreas ajardinadas.
Embora o município realize compostagem de resíduos orgânicos em pelo menos 34 parques municipais, a redução do uso de trituradores aumenta a demanda da prefeitura pelo uso de aterros sanitários. Os resíduos provenientes do manejo arbóreo pela Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb) encaminhados aos aterros passaram de pouco mais de 16 toneladas, em 2017, para cerca de 23 toneladas, em 2019.
Outra disposição final dada ao resíduo de poda é a geração de energia. Seja na produção de briquetes, seja no uso de partes maiores dos troncos como lenha, ambos os casos não exploram o potencial dessa matéria-prima.
“O que também gera gás carbônico. E do ponto de vista da economia circular, é uma subutilização; você acelera a degradação e não fixa o carbono”, aponta Cyntia Malaguti. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP nos cursos de graduação e pós-graduação em Design, Cyntia é uma das colaboradoras do Dapoda, iniciativa que propõe valorizar a madeira rejeitada nas podas de árvores da floresta urbana de São Paulo.
Laboratório Vivo
O Dapoda – Laboratório Vivo de Design reúne estudantes de arquitetura e urbanismo, design, artistas plásticos e pesquisadores da USP. O projeto investiga novas formas de utilização do rejeito das podas na produção de design experimental, entre elas a fabricação de móveis, brinquedos e pequenos objetos de madeira. Mas com um diferencial: traçar a rota tecnológica da madeira descartada – desde a poda, passando pelo transporte até seus usos potenciais.
O embrião do projeto foi um seminário internacional no Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura, do Urbanismo e do Design da USP (Nutau), do qual a professora Cyntia é coordenadora científica. A edição de 2020 do seminário abordou o potencial do resíduo da arborização urbana para pesquisas e projetos de urbanismo, arquitetura e design.
Após a participação no Nutau, o grupo que compõe o Dapoda teve o projeto selecionado pela Superintendência de Gestão Ambiental (SGA) da USP para mitigação e compensação da emissão de gases do efeito estufa nos campi.
Estima-se que a Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira (Cuaso), no Butantã, abrigue cerca de 24 mil exemplares arbóreos, totalizando 90 m³ de resíduos de poda descartados mensalmente. O volume equivale a 18 caçambas de entulho de tamanho médio.
O projeto vai reutilizar as partes maiores dos resíduos de poda e identificar os indivíduos arbóreos da Cuaso, que ainda não tem um inventário concluído. A ideia é explorar as propriedades de cada espécie para diferentes usos e até combinações. Para isso, o Dapoda formou parcerias com outras unidades, dentro e fora da USP:
Laboratório de Anatomia Vegetal, do Instituto de Biociências da USP;
Laboratório de Movelaria e Resíduos Florestais, da Esalq-USP, campus de Piracicaba;
Laboratório de Árvores, Madeira e Móveis, do IPT;
Estúdio Pedro Petry, ecodesigner e empreendedor;
Marca Madeira Urbana, que auxilia o projeto no processamento da madeira.
“Toda semana vamos ao campus para carregar os troncos e separar as peças, para, aos poucos, aprender a identificar as espécies, uma atividade que não é da nossa área. Isso exigiu que buscássemos colaboradores”, conta Tiago Schützer, aluno de graduação de Arquitetura e Urbanismo e um dos líderes do projeto. Ele destaca que a própria condição do resíduo é muito particular, o que torna o trabalho complexo e igualmente interessante para fugir das padronizações da indústria moveleira.
O Dapoda participa ainda do Desafio USP Cidades Sustentáveis. A iniciativa do programa USP Municípios visa à apresentação de propostas que possam ser implementadas por prefeituras e que contribuam para atingir algumas das dez metas estabelecidas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 11 da ONU: Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
“É muito interessante que iniciativas internas de aproveitamento de madeira da USP possam sair dos muros da Universidade para alcançar o município de São Paulo, com potencial para outras cidades. Ficamos felizes com a possibilidade de aumentar a escala de atuação do projeto”, afirma Tomás Queiroz Ferreira Barata. Colega de Cyntia no Departamento de Tecnologia da Arquitetura da FAU, Barata é um dos docentes colaboradores do projeto.
Para Cyntia, o Dapoda é uma forma de incentivar alunos e futuros designers a buscarem uma abordagem mais sustentável para seus projetos, já que muitos estudantes concentram seu trabalho em marcenarias nos centros urbanos.
“Nossos estudos indicam que 20% da madeira utilizada em São Paulo vêm da Amazônia. Seria importante colocar à disposição desses jovens designers a oportunidade de utilizar outros materiais, ainda que em pequena escala. Da mesma maneira que a gente tem a ideia de matriz energética, eu acredito que a gente também deva trabalhar em cima da ideia de matriz de matéria-prima. E não nessa moda de sobrecarregar um único recurso”, reforça.
Junto dos ganhos ecológicos, há ainda as oportunidades estéticas, que arquitetos e designers sabem distinguir como ninguém, e o impacto econômico estrutural. “A partir do momento que você tem uma matéria-prima na sua praça, no seu bairro, diminui a logística de transporte e agrega valor para pequenas empresas. Há uma visão de cadeia produtiva”, argumenta Barata.
No Waste Challenge
Com a cidade de São Paulo na bagagem, o projeto amadureceu e conquistou solo internacional, sendo o único ganhador brasileiro da competição global No waste challenge. Promovido pela What DesignCan Do (WDCD) em parceria com a Fundação Ikea, o concurso recebeu mais de 1.400 inscrições do mundo todo e selecionou apenas 16 projetos vencedores.
O desafio buscou soluções inovadoras para reduzir o desperdício e repensar o ciclo de produção e consumo de materiais que poderiam ter um destino mais nobre do que os aterros. Entre as propostas para reduzir o desperdício e combater as mudanças climáticas, foram apresentadas soluções ousadas como bioplástico feito de casca de banana, o primeiro hub de upcycling de flores e o projeto Dapoda.
Por Tabita Said | Jornal da USP