Universitários criam aplicativo para mapear enchentes e evitar desastres

0
139

Um aplicativo pode mudar a forma como comunidades e órgãos governamentais lidam com as enchentes. Com um telefone celular em mãos, moradores de bairros vulneráveis a inundações podem não apenas se informar com antecedência sobre possíveis eventos do tipo como contribuir com os órgãos competentes no mapeamento de áreas suscetíveis e na prevenção de desastres.

A ferramenta é um dos desdobramentos do projeto Dados à Prova D’Água, parceria entre as universidades de Glasgow e Warwick, no Reino Unido, Heidelberg, na Alemanha, do Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e da Fundação Getulio Vargas, com apoio da FAPESP.

“O princípio básico é de que tecnologia, engajamento das pessoas, geração, uso e circulação de dados melhoram a resiliência das comunidades vulneráveis a desastres socioambientais. Neste caso, inundações”, explica Maria Alexandra da Cunha, professora na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV), coordenadora da parte brasileira do projeto.

- PROPAGANDA -

Levantamento realizado em 2020 pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) contabilizou 1.697 decretos de emergência ou estado de calamidade pública por conta de chuvas intensas naquele ano.

Segundo a área de Defesa Civil da CNM, os prejuízos chegaram a R$ 10,1 bilhões, decorrentes de tempestades, ciclones, deslizamentos, inundações, enxurradas e tornados, sendo o setor de habitação o mais afetado, com 280.486 moradias danificadas ou destruídas e prejuízos de R$ 8,5 bilhões.

O aplicativo Dados à Prova D’Água, que tem o mesmo nome do projeto, foi testado por professores, estudantes, agentes da Defesa Civil e moradores em mais de 20 municípios nos estados de Pernambuco, Santa Catarina, Mato Grosso, Acre e São Paulo e deve ser disponibilizado em breve na Play Store, loja virtual de aplicativos da Google.

Ciência Cidadã

Para alimentar o aplicativo, os pesquisadores usam o princípio da ciência cidadã. Alunos de escolas públicas passam por um treinamento, que envolve a construção de pluviômetros artesanais, usando uma garrafa PET e uma régua simples.

Cada estudante fica, então, responsável por verificar diariamente a quantidade de chuvas medida por cada um desses pluviômetros e inserir as medidas no aplicativo, que vão para o banco de dados do projeto. Espera-se que esses dados possam futuramente ajudar a subsidiar medidas de prevenção a desastres.

“Os dados necessários à gestão de riscos de desastres fluem tradicionalmente de forma unidirecional, dos centros de expertise para a população e órgãos executores. O aplicativo possibilita ampliar esse fluxo, pois promove a participação direta da comunidade nos processos de gestão e amplia a fonte de dados locais dos centros especializados”, afirma Mário Martins, pesquisador vinculado ao projeto, que realiza o pós-doutorado na EAESP-FGV com bolsa da FAPESP.

A aplicação permite ainda enviar informações sobre áreas alagadas, intensidade de chuva e altura da água no leito do rio, além de conter dados disponibilizados por órgãos como as áreas de suscetibilidade do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e dados pluviométricos do Cemaden, para uso dos moradores das comunidades.

“Não queríamos apenas desenvolver um aplicativo. Durante nossas atividades nas áreas de estudo, nos preocupamos em discutir como o aplicativo poderia ser utilizado pelos moradores durante os desastres. Por isso, acabamos desenvolvendo um novo método de desenvolvimento de software e uma ferramenta que pudesse ser usada por todos”, conta Lívia Degrossi, que realiza pós-doutorado na EAESP-FGV.

A pesquisadora desenvolveu a aplicação em colaboração com profissionais do Cemaden, da Defesa Civil e da Secretaria de Meio Ambiente do Acre. Participaram ainda estudantes das escolas estaduais Renato Braga e Vicente Leporace, no Jardim São Luís, na cidade de São Paulo, e moradores do bairro, que fica no M’Boi Mirim, área do município com maior número de regiões de risco, segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).

Memórias de enchentes

“Trabalhamos em escolas públicas com baixos índices socioeconômicos e com histórico de inundações. O Jardim São Luís, com muitos córregos e montanhas, é bastante vulnerável aos alagamentos, mas também a desmoronamentos. A ideia era criar dados e promover a circulação dos que já existem, aqueles que os órgãos governamentais têm, mas não chegam às comunidades”, informa Fernanda Lima e Silva, que realiza estágio de pós-doutorado na EAESP-FGV com bolsa da FAPESP.

Junto com Degrossi, a pesquisadora coordenou a construção de um guia de aprendizagem para o desenvolvimento de uma disciplina eletiva, a ser oferecida por escolas públicas, preferencialmente com estudantes de ensino médio, sobre prevenção de desastres, ciência cidadã e o impacto das mudanças climáticas no dia a dia das pessoas. A rede de colaboradores envolveu professores das escolas participantes do projeto e do Cemaden Educação, que vai disponibilizar o guia em seu site.

Além da prevenção de desastres, o projeto trabalha com memórias das enchentes. Inicialmente, os estudantes do Jardim São Luís entrevistaram parentes mais velhos e levaram para a sala de aula histórias que acabaram fornecendo dados sobre o passado das enchentes na região.

Também foram realizadas rodas de conversa com os moradores mais antigos e até mesmo a produção de uma série de minidocumentários chamada Memórias à Prova D´Água.

O trabalho contou com a parceria de pesquisadoras da Universidade de Warwick, que desenvolvem pesquisa sobre memórias de desastres com o objetivo de aumentar a resiliência comunitária.

A experiência rendeu ainda um capítulo de livro, que será publicado em uma edição especial sobre memórias e sustentabilidade do Bulletin of Hispanic Studies, a ser publicado em 2023.

“Fizemos também um mapeamento de percepção de risco em que os próprios moradores colocavam as áreas suscetíveis no mapa. É um conhecimento muito mais detalhado do que o feito pelos órgãos competentes. Consegue-se chegar ao nível da esquina do bairro e com isso foi detectado um problema forte com enxurradas, por exemplo”, conta Lima e Silva.

Os pesquisadores realizaram ainda oficinas da ferramenta de mapeamento colaborativo no OpenStreetMap, que tem licença de uso gratuita e permite que os usuários acrescentem informações aos mapas. O objetivo era mapear o bairro, chamando atenção para as enchentes e os riscos de deslizamentos de terra.

Neste ano, o grupo vai lançar um manual para que o programa possa ser implementado em mais localidades do país. “É muito importante que as pessoas se engajem com os dados, desde a sua geração até o uso. Esperamos poder contribuir para espalhar essa prática e aumentar a resiliência desses locais, uma vez que eventos extremos estão se tornando cada vez mais comuns”, encerra Cunha.

Por André Julião | Agência FAPESP