A retomada da economia com o arrefecimento da pandemia de Covid-19 trouxe uma aceleração da inflação e, com ela, inadimplência e endividamento maiores para famílias e empresas. Os problemas, ao mesmo tempo, impedem um crescimento maior do Produto Interno Bruto (PIB), o que resulta em um menor consumo e no adiamento dos planos de investimentos. Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (CNC), divulgados na terça-feira, 7, 28,7% das famílias brasileiras tinham uma conta ou dívida em atraso, um crescimento de 0,1% em relação ao mês anterior – foi a oitava alta consecutiva no índice de inadimplência. Já o percentual das que estão endividadas, ou seja, que têm dívidas em atraso ou não, ficou em 77,4% em maio, abaixo dos 77,7% de abril, interrompendo três meses de altas. Mesmo com a queda, a taxa ainda é superior à de maio de 2021 (68%). A quantidade de familiares que não terão condições de pagar suas contas em atraso também caiu de 10,9%, em abril, para 10,8%, índice registrado em maio – no mesmo mês do ano passado, o índice era de 10,5%.
Além da queda nos índices da Covid-19 e a reabertura de grande parte dos negócios, outros fatores também causaram o aumento da inflação, como a guerra entre Rússia e Ucrânia, que causou o aumento no preço de commodities como petróleo, gás natural e trigo, produzido por um ou ambos os lados envolvidos no conflito. Outra questão foi o desarranjo nas cadeias de suprimentos globais: a falta de microchips causou problemas para a fabricação de carros e aparelhos eletrônicos, e navios tiveram que ficar semanas parados em portos esperando para poderem desembarcar os produtos. Os lockdowns na China, devido à política de “Covid zero” no país mesmo após grande parte da população estar vacinada, também levou a atrasos na importação e exportação de itens para o país asiático, a segunda maior economia do mundo. Em maio, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), principal índice da inflação, registrou aumento de 0,47%, uma desaceleração em relação ao 1,06% de abril; no acumulado de 12 meses, o aumento foi de 11,73%.
Com o aumento da inadimplência e o endividamento ainda em alta, apesar das ligeiras quedas, os bancos se tornam mais seletivos na hora de conceder crédito, o que também freia possíveis investimentos a serem feitos por famílias e empresas. Assim, o crescimento volta a ficar limitado, apesar do retorno da circulação de pessoas a níveis normais pelas cidades. “Famílias muito endividadas perdem a capacidade de compra porque elas ficam negativadas, perdem o acesso ao crédito, o orçamento fica comprometido, inclusive para compra de produtos essenciais. Então, o super endividamento é muito ruim para o país, e hoje temos 62 milhões de pessoas negativadas”, analisa Ricardo Rocha, professor de finanças do Insper, citando o número de negativados revelado por levantamento da Serasa em julho de 2021.
A inflação é um dos fatores que causam o endividamento e a inadimplência por dificultar a vida de quem não tinha problemas financeiros antes da alta de preços acelerar, como Rocha explica. “As pessoas não percebem em um primeiro momento, mas elas começam a gastar um recurso que não está no orçamento mensal, começam a usar cheque especial, rotativo do cartão, e quando percebem, o problema já se instalou. Agora, nós temos ainda reflexos da pandemia e da renda que não cresce. Mesmo as pessoas que estão empregadas têm que fazer uma readequação porque a renda não tem crescido”, disse em entrevista à Jovem Pan. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada em 18 de março pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda média do trabalhador brasileiro caiu 9,7% em um ano.
O mercado de trabalho tem tido uma recuperação lenta: no trimestre encerrado em fevereiro, recuou para 11,2%, uma queda de 0,4% em relação ao trimestre anterior, finalizado em novembro. A dificuldade para conquistar um novo emprego afeta, principalmente, quem tinha empregos informais ou era microempreendedor individual, perdeu o trabalho durante a pandemia e passou a utilizar o crédito que tinha disponível à espera de uma reviravolta. Com a lentidão na retomada, torna-se mais difícil para essas famílias quitarem as dívidas. Para lidar com a situação, Rocha cita que o governo pode prosseguir com as medidas que já vinha adotando. “Algo semelhante ao que vem sendo feito desde a pandemia, autoriza o uso do FGTS, estimula os bancos a negociarem com os clientes inadimplentes, talvez para alguma vantagem de provisionamento de perda [quando a empresa faz uma reserva ao emprestar para clientes com risco de se tornarem inadimplentes], e trabalhar do ponto de vista monetário que é o que o Banco Central tem feito. Tem feito um trabalho árduo, subindo juros, mas acho que as coisas vão começar a se acertar”, comenta, em tom otimista.
FUTURO
Porém, o crescimento da economia ainda pode ser duramente afetado pela situação de endividamento. Para Luis Alberto Paiva, sócio e CEO da Corporate Consulting, especializada em turnaround (termo em inglês que, na gestão de negócios, se refere a um processo de recuperação do valor e da performance empresarial diante de um cenário de declínio e mau desempenho) e reestruturação de empresas, é possível que o país tenha um crescimento maior do Produto Interno Bruto (PIB) em 2022 e 2023, mas será preciso superar alguns obstáculos. “Uma inflação de 12,13% em 12 meses até abril e projetada em 10% para o ano, combinada à manutenção da Selic [taxa básica de juros] em cerca de 13,25% até o segundo trimestre de 2023, além da perspectiva ainda desalentadora de normalização das cadeias de suprimentos para a produção industrial, também azedam a possibilidade de crescimento mais consistente no ano que vem”, analisa.
Na avaliação de Nicola Tingas, da Associação Nacional de Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi), a inflação começou a demonstrar uma desaceleração e deve ser prioridade das medidas de redução de tributação no Congresso. Ao mesmo tempo, o cenário de elevados gastos eleitorais deve manter a redução do desemprego e melhorar a renda, com efeitos positivos para o PIB. Nos próximos anos, outros desafios serão apresentados, como um cenário internacional complicado, com os efeitos dos aumentos das taxas de juros em outros países levando a uma desaceleração da atividade econômica, além de preços elevados de energia e alimentação e aversão ao risco por parte de investidores.
“Após as eleições e término de maior parte dos estímulos financeiros e tributários, as contas públicas brasileiras estarão em maior vulnerabilidade e demandarão novas fontes de financiamento via maior tributação e ou redução e realocação de orçamento, com economia perdendo vigor devido aos efeitos contracionistas do aperto monetário. Será um novo ‘ciclo de desafios’ que exigirá do governo eleito uma política econômica consistente e produtiva para gradual normalização da situação econômica e social”, disse. Por isso, a previsão de crescimento do PIB é de 1,5% em 2021 e 0,8% em 2023, mas com quedas da inflação e das taxas de juros: a primeira deve terminar 2022 em 8,20% e 2023 em 4,5%, e a taxa Selic deve ir de 13,25% no final de 2022 para 8,5% em 2023.
Jovem Pan