Farmácia Popular: qual o impacto do programa na saúde da população e redução de custos

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O Governo Federal reduziu em 59% o orçamento do programa Farmácia Popular para o ano de 2023, de acordo com a estimativa de receitas e despesas da União enviada para aprovação no Congresso Nacional, no último dia 31. A proposta orçamentária diminui de 2,04 bilhões para 842 milhões de reais o investimento no projeto de distribuição de medicamentos.

A informação apurada pelo jornal O Estado de S.Paulo em 7 de setembro trouxe o programa ao centro do debate pela sua importância no acesso de medicamentos para o controle de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, reduzindo os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com internações e tratamentos de alta complexidade. Cerca de 21 milhões de brasileiros são beneficiados pelo Farmácia Popular.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou em evento nesta quarta-feira (14) que não haverá cortes ao programa e que recebeu ligação do presidente Jair Bolsonaro para tratar sobre o trema. Segundo ele, serão encontrados recursos para manter as características do programa Farmácia Popular. É preciso, portanto, aguardar modificações na proposta orçamentária para concretizar a fala.

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O corte proposto pode provocar grandes prejuízos à saúde pública, além de impactar as vendas nas farmácias particulares, que atuam com convênios junto ao Ministério da Saúde para a dispensação desses medicamentos, e a indústria farmacêutica, em especial as produtoras de genéricos, que é a principal categoria comercializada nesse modelo.

Esse não seria o primeiro corte no programa, que vem sofrendo com a falta de atualização nos valores de repasse, dificuldade de credenciamento de novas farmácias e fechamento de unidades próprias desde 2016. Contudo, em um contexto de crise econômica, os impactos na redução de recursos para a Farmácia Popular pode ser mais prejudicial que os anteriores.

“O programa Farmácia Popular é fundamental para essa parcela da população que não tem recursos financeiros e vivem com doenças crônicas não transmissíveis, como hipertensão, asma e diabetes. Ele considera a necessidade em saúde, as doenças mais prevalentes e os medicamentos essenciais para tratá-las”, aponta Sílvia Storpirtis, diretora-presidente da Sociedade Brasileira de Farmácia Clínica (SBPC) e da Fundação Instituto de Pesquisas Farmacêuticas (FIPFARMA).

Farmácia Popular ampliou o acesso

Criado em 2004, o Programa Farmácia Popular do Brasil surgiu para complementar o acesso a medicamentos para populações que não eram atendidas exclusivamente pelo SUS. Inicialmente, era composto apenas por unidades próprias, fruto de parcerias entre municípios e entidades filantrópicas, que ofereciam medicamentos com descontos adquiridos pela Fiocruz.

“O acesso não ficou restrito às classes C e D, que inicialmente era objetivo do programa. Percebemos que em muitos municípios os próprios usuários exclusivos do SUS passaram a obter medicamentos nessas unidades, porque a gente sabe que sempre houve uma deficiência crônica em termos de disponibilidade de medicamentos nos municípios brasileiros”, aponta Cláudia Du Bocage Santos Pinto, professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisadora colaboradora do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

Com o sucesso do programa e a alta prevalência de doenças, medicamentos para hipertensão, diabetes e asma passaram a ser gratuitos, enquanto outras categorias possuem descontos de até 90%, que são custeados pelo governo. Esses de copagamento do usuário são para osteoporose, doença de Parkinson, contraceptivos, glaucoma, entre outras condições.

Para se ter uma ideia, 16,8 milhões de pessoas adultas têm diabetes no Brasil, 30 milhões de pessoas com hipertensão arterial e 20 milhões com asma. Caso estejam descompassadas, podem aumentar o risco de internação, necessidade de intervenção e tratamentos mais caros, refletindo um aumento de gastos no sistema público.

Dois anos após o início do programa, as farmácias privadas passaram a ser credenciadas e hoje somam mais de 29 mil unidades, o que contribuiu para aumentar o alcance da Farmácia Popular. A União repassa o valor dos medicamentos fornecidos à população, seja ele gratuito ou não, às farmácias, estabelecendo um valor referência.

“O governo passou a repassar recursos para as farmácias e elas disponibilizam medicamentos do seu próprio estoque. Essa modalidade foi bem impactante por ser responsável pela grande capilaridade do programa, chegando a praticamente todos os municípios brasileiros” explica a professora Cláudia.

Para Sílvia Storpirtis, diretora-presidente da SBPC, outro ponto positivo do programa é a possibilidade dos farmacêuticos entrarem em contato com o paciente, prestando um atendimento integral. “Em toda farmácia é obrigado ter um profissional responsável e ele faz a dispensação. Não é simplesmente a entrega do medicamento, mas a orientação de como utilizar para obter o efeito desejado. Com isso, nós ganhamos em qualidade, porque nas Unidades Básicas de Saúde o farmacêutico tem sido incorporado à equipe”, afirma.

Sucesso e ampliação

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) apontam que o programa foi responsável por reduzir entre 2004 e 2016, em média, 150,5 mil internações decorrentes de doenças crônicas não controladas, ligadas aos medicamentos fornecidos gratuitamente pela Farmácia Popular, Ainda, o estudo mostrou que somente em 2016, o SUS economizou 233 milhões de reais com as hospitalizações evitadas.

Outro achado importante foi referente à redução da mortalidade por essas doenças. Mais de 19 mil óbitos foram evitados no mesmo ano por conta do programa, sendo mais expressivo para pacientes com diabetes, com uma queda de 59,2%, e a população com pressão alta, com uma redução de 34,5% dos casos.

“Estamos falando de doenças que são extremamente prevalentes, como hipertensão, diabetes e asma, de medicação de uso crônico, para a vida toda. Se você não tem o uso correto tem uma piora significativa na saúde da população, que no final das contas vai acabar batendo na atenção secundária e terciária, com agravamento de quadros e necessidades de intervenções, que vão custar muito mais ao sistema de saúde”, afirma Cláudia.

O sucesso se dá pela capilaridade e gratuidade, mas a facilidade com que os usuários conseguem o medicamento também é um dos pontos-chave. Basta a pessoa apresentar a receita médica, RG, CPF e cartão do SUS. Com isso, mesmo que ela tenha passado com um médico de uma clínica privada, ele consegue obter o medicamento ou produto em qualquer farmácia credenciada.

O programa também ocupa uma lacuna do sistema público, que é a falta de medicamentos nas unidades básicas de atendimento. Uma pesquisa publicada na Revista de Saúde Pública em 2017 apontou que 38% dos responsáveis pela dispensação de medicamentos na atenção primária no SUS, de 293 municípios, afirmam que a falta de medicamentos ocorre sempre ou repetidamente. A conduta adotada pelos médicos é de encaminhar para a Farmácia Popular em 75,4% dos casos.

“Se a gente pensa que temos uma situação de muitos anos de falta de medicamentos da atenção básica em muitos municípios, diversos estudos mostram que a gente tem uma situação de indisponibilidade de medicamentos nas unidades de saúde. Para muitos municípios, a Farmácia Popular acaba sendo a alternativa de acesso”, aponta a professora Cláudia.

Cortes

O programa chegou a ter 397 farmácias próprias, na mesma época que os cortes de orçamento começaram, com a redução de 578 milhões de reais do orçamento em 2016. Contudo, o maior choque veio no ano seguinte, quando o Ministério da Saúde decidiu fechar toda a rede, mantendo o serviço apenas através das farmácias privadas credenciadas. De acordo com a pasta da época, 80% do orçamento das unidades próprias era destinado a questões administrativas, enquanto apenas 20% era destinado a compra e distribuição de medicamentos.

“Desde que foi criado teve uma expansão significativa. Nos últimos anos fomos sofrendo cortes, como a extinção das unidades próprias. As farmácias credenciadas também sofreram com a exclusão e houve uma paralisação dos novos credenciamentos. Obviamente que houve algumas situações de irregularidades. Somando todas as questões, tivemos uma redução do impacto do programa”, alerta a pesquisadora da Fiocruz, Cláudia Pinto.

O risco de um novo corte, previsto para 2023, gera preocupação para todos os envolvidos, tanto para indústria quanto para farmácias. Os medicamentos da Farmácia Popular não estão atrelados a marcas, mas sim ao princípio ativo. Por serem mais baratos e garantirem a mesma eficácia, os medicamentos genéricos são grandes aliados do programa, e estima-se que representam 85% de todos os produtos fornecidos.

Em nota, Telma Salles, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos e Biossimilares (PróGenéricos), afirma que “reduzir verba do programa Farmácia Popular trará prejuízos imensuráveis para todo o sistema de saúde brasileiro. Estamos falando da vida das pessoas. Será oportuno saber como o governo pretende tratar as pessoas que ficarão sem esses medicamentos”.

Para a presidente da SBFC, Sílvia Storpirtis, os cortes são sistemáticos e não levam em consideração as avaliações e os impactos positivos que o programa traz para o país: “É uma falta de responsabilidade. Se o programa está efetivo para melhorar a saúde da população e reduzir os custos do próprio SUS, isso tem que ser levado em consideração. Cortar simplesmente, sem uma análise mais profunda, é complicado”.

Fraudes

O programa frequentemente é alvo de fraudes. Em 2020, o Tribunal de Contas da União realizou uma investigação para identificar irregularidades, que resultou na condenação de 59 farmácias credenciadas. Juntos, tiveram que devolver ao Fundo Nacional da Saúde cerca de 15,5 milhões de reais. De acordo com o órgão, as fraudes mais comuns estavam ligadas à não comprovação de que os medicamentos foram adquiridos ou estão em estoque.

Em maio deste ano, o Fantástico, da TV Globo, também investigou um outro tipo de fraude no programa. Dados de usuários eram utilizados para retirar medicamentos sem que eles soubessem, e só foi descoberto porque o aplicativo ConecteSUS mostra o histórico de recebimentos de medicamentos pelo Farmácia Popular. Relatório da Controladoria Geral da União, obtido pelo programa, aponta que entre 2015 e 2020, R$ 2,6 bilhões foram desviados através de “vendas fictícias”.

Claúdia Pinto, da Fiocruz, que durante sua trajetória como pesquisadora desenvolveu diversos trabalhos em torno do programa Farmácia Popular, afirma que é preciso ter uma fiscalização e acompanhamento mais próximo, já que com um orçamento tão expressivo, podem ocorrer certas irregularidades. Ela aponta que “em alguns municípios bem pequenos, com grande parcela da população em vulnerabilidade social, o montante transferido para as farmácias privadas é mais que o dobro do que é transferido para assistência farmacêutica básica [SUS], que tem que dar conta de todos medicamentos da atenção primária daquele município”.

Em sua visão, apesar do modelo atual ser importante, o ideal seria trabalhar o convênio com as farmácias privadas, mas mirando a longo prazo o fortalecimento da atenção primária do sistema público, tanto para a dispensação de medicamentos como para adotar estratégias que diminuam a necessidade deles. “Mas sabemos que as situações quando pensamos em saúde e alimentação ocorrem hoje, e não a longo prazo. As pessoas adoecem hoje, morrem hoje e têm fome hoje. Então, precisamos viabilizar alternativas para que as demandas sejam atendidas”, conclui a professora da UFMS.

Futuro da saúde